Dia Internacional Para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres
«(…) Espancara-a até a deixar cheia de sangue. Antes disso, não lhe batia. "Ou por outra batia-lhe, mas ternamente, por assim dizer. Chorava um bocadinho. Eu fechava as persianas e o caso terminava como sempre. Mas agora, foi a sério. E quanto a mim, ainda não a castiguei bastante.»
(Albert Camus, O Estrangeiro)
Hoje não podíamos omitir o drama das mulheres que em todo o mundo experienciam algum tipo de violência. Uma realidade que, contrariamente ao que imaginávamos há alguns anos, está longe de ser ultrapassada. Presente em todos os grupos sociais, etários ou culturais, estima-se que, a nível global, uma em cada três mulheres tenha sofrido, em algum período da sua vida, violência doméstica ou sexual. Uma percentagem que nos impôs a divulgação de um dos muitos documentos do acervo do Arquivo Municipal de Loures que testemunham a constância de padrões abusivos e controladores que têm oprimido e colocado em perigo a vida das mulheres.
Neste documento, um ofício com data de 21 de julho de 1941, o regedor da freguesia de Odivelas comunicava ao presidente da Câmara Municipal de Loures, pedindo que se aplicasse um castigo ao arguido, uma queixa feita por Rosa […] contra o homem com quem vivia, por este a ameaçar constantemente de morte, colocando-a na rua com os três filhos menores, vendendo depois tudo o que tinha em casa.
Em Portugal, quando supostamente o dito português «entre o homem e a mulher não metas a colher» e a tolerância ao conceito «de moderada correção doméstica» já estariam derrotados, a situação é igualmente angustiante. Tampouco o reconhecimento da violência como crime público – em que o procedimento criminal não está dependente de queixa por parte da vítima – tem sido suficientemente dissuasor. As 30 000 denúncias apresentadas em 2022 e os 14 863 registos no primeiro semestre de 2023, dão-nos a dimensão de um problema que, só nos últimos quatro anos, levou à morte de mais de uma centena de mulheres e crianças portuguesas.
Conquanto as taxas de agressão a mulheres rondem os 98%, os homens, ainda que numa proporção incomensuravelmente menor, também são agredidos. O abuso perpetrado contra crianças e idosos também não é desvalorizável, sobretudo sobre os últimos, pela sua maior invisibilidade social. Por enquanto, a dimensão da vitimação feminina está demasiado presente para não estar no centro de uma discussão que requere uma mudança de mentalidades e a passagem do «direito no papel» para o «direito na realidade», quebrando ciclos de violência, criando consciências éticas de censurabilidade sobre um delito que, a curto prazo, exigirá abordagens inevitavelmente mais abrangentes.
CML - AML – Série Correspondência Recebida, 1941